sábado, 10 de abril de 2004

O Kardecismo

O Kardecismo chegou ao Brasil em meados do século passado. Criado na França por Allan Kardec (pseudônimo de Leon Hippolyte Denizart Rivail), essa doutrina filosófica e religiosa fez pouco sucesso em seu local de origem, mas no Brasil teve grande repercussão e aceitação, inicialmente entre as famílias de classe media (mais próximas das idéias e novidades produzidas na Europa) e depois entre a população em geral.
Como base doutrinaria, o kardecismo estabelece a existência de um Deus criador, onipotente e onipresente (o mesmo da tradição judaico-cristã), porem muito distante dos homens. Mais próximo destes estão os “guias” (espíritos dos mortos, “desencarnados”), cuja missão é ajudar os homens a evoluir através da pratica da caridade, do bem e do amor aos semelhantes.
A crença na reencarnação é um dos pontos centrais desse sistema religioso. Os espíritos passariam por sucessivas encarnações ao longo das quais, dotados do livre-arbítrio, poderiam evoluir através da pratica do bem, ou regredir cedendo aos vícios do corpo material (promiscuidade, alcoolismo, drogas, violência, ignorância, etc.). Pela “lei do karma” (de inspiração hinduísta), a cada reencarnação na Terra os espíritos colhem os frutos das boas ações praticadas no passado ou pagam pelas más. De acordo com essa ações é que eles se tornam espíritos “de luz” ou “das trevas”. A Terra é considerada, nesse contexto, um planeta de aprendizado, expiação (através do sofrimento), solidariedade e caridade (para com o que sofrem).
Jesus Cristo, cujo evangelho é reinterpretado à luz dessa doutrina, é tido como um espírito superior (a maior entidade encarnada que já veio ao nosso mundo) e exemplo do sacrifício e abdicação necessário ao aprimoramento espiritual.
A mediunidade (capacidade de entrar em contato com o mundo invisível dos espíritos) é considerada uma qualidade inata e necessária ao homem em seu processo de evolução espiritual. Cadê à religião, portanto, promover os meios para que os adeptos desenvolvam essa capacidade e entrem em contato com o mundo dos desencarnados. O Kardecismo caracteriza-se, ainda, pela aplicação dos métodos e explicações cientificas (em pleno auge de valorização na época de sua formação) no entendimento dos fenômenos sobrenatuais. Assim, para explicar os fenômenos espirituais (como a possessão, a vida após a morte, etc.) através da dedução, das leis de ação e reação, causa e efeito, o kardecismo produziu, ao mesmo tempo, um discurso racional e religioso. Se nas religiões mágicas os fenômenos sobrenaturais são aceitos tendo como base à fé nos mistérios divinos, no kardecismo esses mistérios foram explicados em bases “cientificas”, o que permitiu atingir um publico mais instruído e suscetível às criticas ao chamado “baixo espiritismo”.
O transe, sendo praticado no kardecismo por uma população de nível educacional maior, como funcionários públicos e profissionais liberais, passou a ser mais bem aceita por essa camada social que sempre o vira como característica das religiões “primitivas” ou “atrasadas”. Essa atitude racional e cientifica do kardecismo refletiu-se na valorização da escrita e da leitura no contexto religioso. Os livros (geralmente psicografados pelos médiuns, contendo a doutrina e os ensinamentos morais) tornaram-se veículos importantes para a difusão da religião, principalmente entre a classe media instruída.
No plano organizacional, o movimento espírita desenvolveu-se articulando suas varias áreas de atuação em federações. Embora essas federações não fossem uma doutrina ou praticas unificada a serem seguidas, funcionaram como importantes canais para o desenvolvimento da religião no nível da mobilização em favor dos ideais e interesses comuns aos grupos espíritas.
Em resumo, o kardecismo, sendo praticado por um estrato social mais elevado da população, autodenominando-se uma religião cristã, legitimando a possessão dos espíritos e apresentando um discurso racional frente os fenômenos mágicos, serviu como mediador para a constituição da umbanda, que, sob sua influencia, se desenvolveu como religião organizada.

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