sábado, 10 de abril de 2004

Uma Historia que não está nos livros

Candomblé e Umbanda
Caminhos da devoção brasileira

Muitas perguntas passam pela cabeça das pessoas quando o assunto é as religiões afro-brasileiras:
O que são?
Como se originaram?
O que pregam?
Quais as diferenças entre elas? Quem as pratica?...
O objetivo deste livro é responder a essas perguntas e fornecer ao leitor uma visão historia do desenvolvimento dessas religiões, enfocando principalmente seus dois modelos mais conhecidos: o candomblé e a umbanda. Com certeza, entretanto, sua leitura despertará nova duvidas, novos interesses, já que o campo religioso afro-brasileiro é muito rico e diversificado, como veremos.
Reconstituir o processo histórico de formação das religiões afro-brasileiras não é, contudo, uma tarefa fácil. Primeiro, porque sendo religiões originarias de segmentos marginalizados em nossa sociedade (como negros, índios e pobres em geral) e perseguidas durante muito tempo, há poucos documentos ou registros históricos sobre elas. E, entre esses, os mais freqüentes são os produzidos pelos órgãos ou instituições que combateram essas religiões e as apresentam de forma preconceituosa ou pouco esclarecedora de suas reais características. É o caso dos autos da Visitação do Santo Oficio da Inquisição, nos quais estão registrados os processos de julgamento de muitos adeptos aos cultos afro-brasileiros que foram perseguidos (sob a acusação de praticarem “bruxaria”) pela igreja católica no Brasil colonial. Ou, então, dos “boletins de ocorrência” feitos pela policia para relatar a invasão de terreiros e a prisão de seus membros, sob a acusação de praticarem curandeirismo, charlatanismo, etc.
A mesma visão preconceituosa também domina os relatos dos viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil nos séculos passados, e descreveram algumas manifestações religiosas afro-brasileiras como festas, danças, procissões, etc.
Outras razões que dificultam o relato da historia das religiões afro-brasileiras são suas características particulares. Trata-se de religiões cujos princípios e praticas doutrinarias são, em geral, estabelecidos e transmitidos oralmente. Não há nelas livros sagrados (como a Bíblia, por exemplo) que registrem sua doutrina de forma unificada ou sua historia. Neste sentido, são religiões não institucionalizadas. Ao contrario do que acontece, por exemplo, com a igreja católica, que tem uma hierarquia centralizada na figura do Papa e estabelece princípios doutrinários validos para as suas igrejas em todo o mundo, os terreiros são autônomos. Cada chefe de terreiro é o senhor absoluto, a autoridade máxima, o “papa” de sua comunidade.
A historia dessas religiões tem sido feita, portanto, quase que anonimamente, sem registros escritos, no interior dos inúmeros terreiros fundados ao longo do tempo em quase todas as cidades brasileiras.
Ao lado dessas dificuldades, existem ainda outras relativas ao desinteresse pelos estudos das religiões afro-brasileiras. É que tanto no senso comum como em muitos circuitos intelectuais, essas religiões não desfrutam do mesmo “status” de outras – por exemplo, o catolicismo, cujo historia tem sido fartamente registrada e, em muitos casos, divulgada nas escolas como parte dos currículos de algumas disciplinas oficiais ou como matéria principal do ensino religioso facultativo.
Os cultos afro-brasileiros, por serem religiões de transe, de sacrifício animal e de culto aos espíritos (portanto, distanciados do modelo oficial de religiosidade dominante em nossa sociedade), tem sido associados a certos estereótipos como “magia negra” (por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualista do bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs), superstições de gente ignorante, praticas diabólicas, etc. Alguns desses atributos foram, inclusive, reforçados pelos primeiros estudiosos do assunto que, influenciados pelo pensamento evolucionista do século passado (cujo modelo de religião “superior” era o monoteísmo cristão), viam as religiões de transe como formas “primitivas” ou “atrasadas” de culto. Assim, “religião” opunha-se a “magia”, da mesma forma que as “igrejas” (instituições organizadas de religião) opunha-se as “seitas” (dissidências não institucionalizadas ou organizadas de culto). Mas esses conceitos há muito tempo foram revistos e o ponto de vista adotado neste livro é de que não existem religiões superiores ou inferiores, certas ou erradas, do bem ou do mal, pois essas classificações resultam mais de juízos éticos ou julgamentos subjetivos para os quais na há consenso possível – principalmente por que com freqüência as religiões são julgadas com os conceitos ou preconceitos provenientes de outras.
Ainda que se considere, como fizeram os evolucionistas, que as religiões mais atrasadas são aquelas que possuem uma dose maior de magia, bastariam lembrar que todos os sistemas religiosos baseiam-se em categorias do pensamento mágico. O oficio de uma missa, por exemplo, comporta uma serie de atos simbólicos ou operações mágicas (como as bênçãos, a transubstanciação da historia em corpo de Cristo, etc.) tanto quanto um ritual do candomblé ou da umbanda.
Alias, como veremos a seguir, foram as semelhanças estruturais entre a forma de culto catolicismo popular e das religiões de origem africana e indígena (devoção aos santos e deuses tutelares, etc) que possibilitaram o sincretismo e a síntese da qual se originaram as religiões afro-brasileiras.
Por fim, cabe ressaltar que as religiões, ainda que sejam sistemas de praticas simbólicas e de crenças relativas ao mundo invisível dos seres sobrenaturais, não se constituem senão como formas de expressão profundamente relacionadas à experiência social dos grupos que as praticam. Assim, a historia das religiões afro-brasileiras inclui, necessariamente, o contexto das relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas entre os seus principais grupos formadores: negros, brancos e índios.
O desenvolvimento do candomblé, por exemplo, foi marcado, entre outros fatores, pela necessidade por parte dos grupos negros de reelaborarem sua identidade social e religiosa sob as condições adversas da escravidão e posteriormente do desamparo social, tendo como referencia as matrizes religiosas de origem africana. Daí a organização social e religiosa dos terreiros em certa medida enfatizarem a “reinvenção” da África no Brasil.
No caso da umbanda, de formação mais recente, seu desenvolvimento foi marcado pela busca, iniciada por segmentos brancos da classe media urbana, de um modelo de religião que pudesse integrar legitimamente as contribuições dos grupos que compõem a sociedade nacional. Daí a ênfase dessa religião em apresentar-se como genuinamente nacional, uma religião à moda brasileira.
Mas, para reconhecer e entender melhor este complexo quadro de semelhanças e divergências que caracterizam as religiões afro-brasileiras, deve-se começar indicando suas fontes a partir do universo social e religioso do Brasil colonial.

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